Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

O Cuidado Coronário: Ciência Duvidosa,

Ética Duvidosa

 

A atual abordagem do cuidado coronariano não é ética e nem científica. E a despeito de todos os remédios de alta tecnologia que estão sendo alardeados pela mídia a taxa de mortalidade permanece sem mudanças,  escrevem os Doutores ML Kothari, LA Mehta e VL Kothari, em artigo publicado na revista Humanscape de setembro de 1999, do qual apresentamos abaixo uma versão resumida:

 

“A edição de domingo do Jornal Times da Índia tem uma página cheia com reportagens apresentando técnicas atuais para o cuidado coronário, das medidas triviais ao transplante. Tais artigos fazem pouco para educar, mas são abundantes para amedrontar os leitores fazendo acreditar que estamos na “borda de uma epidemia” da doença cardíaca. Também fazem promessas grandiosas, prevendo cirurgias de rotina através de robôs, e terapia genética com o ‘gene mágico que poderá fazer o coração criar novas artérias de forma automática para substituir aquelas cansadas e estreitadas.’ Esta combinação de jornalismo e linguagem médica parece não estar informada da manifesta falta de plausibilidade científica dos conceitos atuais da doença das coronárias. O fato é que a despeito de tanta verborragia e trabalho, a taxa de mortalidade atribuída a doença do coração permanece sem mudanças. A natureza anti-ética do atual cuidado coronariano reside em esconder do público sua falta de base científica. A cardiologia cobre uma larga variedade de problemas cardiovasculares. Para clareza e brevidade, nós devemos usar o termo coronariologia para conotar tal ramo da cardiologia que atende a doença da artéria coronária (DAC). Desnecessário dizer, que muito da prática cardiológica é coronariologia, pronunciada da mesma forma que cardiologia.

 

ABC da Coronariologia

O problema essencial na doença coronária é que o coração não consegue a quantidade de sangue requisitada porque sua corda salva vidas – a artéria coronária – está entupida.

O ABC da coronariologia compreende:

- (A) para Artéria: A artéria precisa ser mexida para carregar mais sangue, usando-se meios médicos ou  cirúrgicos;

- (B) para Blood (Sangue): O sangue precisa ser monitorado e mantido fino (por essa razão a aspirina) e livre da sobrecarga de colesterol e outros elementos lipídeos indesejáveis (por essa razão as drogas e dietas para redução de colesterol/lipídeos,

- (C) para coração: O coração deverá ser ajudado a trabalhar menos, para que o déficit-suprimento-demanda seja minimizado.

 

A Ignorância da Coronariologia (Os 3 Cs)

Antes de detalhar os ABCs da coronariologia, é imperativo apreciar e tomar conhecimento da essência epistomológica desta importante disciplina, especificamente, em relação aos 3 Cs - Causa, Curso e Cura - da DAC, onde rege uma ignorante arrogância.

 

Com a causa desconhecida, a anti-causa ou cura permanece desconhecida. Dessa forma quaisquer que sejam os remédios ou procedimentos que os coronariologistas empreguem não são anti-patologia, mas anti-esse-sintoma-ou-este-sinal-ou-aquela-investigação. Com o segundo C, especificamente Curso, perpetuamente permanecendo no reino das conjeturas, nenhuma investigação, mesmo sofisticada, diz ao paciente ou ao doutor o que vai acontecer.

 

Recente artigo comenta: “Um tópico quente entre os clínicos de hoje, o conceito de medicina baseada em evidências, desenvolveu-se a partir da crescente compreensão que muitos dos testes e tratamentos introduzidos na prática clínica são de benefício não provado ou incerto”.

 

Parte Arterial do ABC da Coronariologia

Todas as medidas médicas que almejam influenciar a árvore coronária arterial funcionam por bloquear-essa-enzima-ou-aquele-canal. A vantagem, qualquer que seja, é local, mas a perda é vasta pois essas mesmas drogas podem interferir com o mecanismo fisiológico de todo o organismo. Este é o motivo pelo qual são poucas as palavras gastas nas indicações, enquanto são diversas as palavras gastas nos efeitos colaterais dessas drogas na coronariologia.

 

Tendo falhado no desenvolvimento de drogas que possam vantajosamente alargar as artérias coronárias, os coronariologistas adotaram o recurso de atacá-las diretamente. Mas existem muitos impedimentos intelectuais.

a) Até hoje, não está decidido se a artéria coronária bloqueada é um efeito ou a causa. Pode ser que estejamos tratando o resultado sem nenhum ganho resultante.

b) A angioplastia é conhecida por causar ‘estenose induzida por força opositora’. Vermani, da Administração de Veteranos, Washington, opinou que a angioplastia força o rompimento da artéria para criar a ilusão angiográfica de maior largueza arterial e um maior fluxo.

c) O artigo do Jornal Times da Índia, aludido no início do artigo coloca: "Você pode descrever a cirurgia cardíaca como um dignificante trabalho de um encanador: criando um desvio ao redor de um cano obstruído. No terreno médico isto envolve a criação de uma nova passagem para o sangue alcançar o coração quando as artérias na 'bomba' humana estiverem obstruídas. Isto é a essência desse sofisticado procedimento chamado de cirurgia de ponte de safena"

 

Bem dito. Os autores acompanharam o magnificente tomo médico chamado Harrison's Principles of Internal Medicine Vol 1, 2), de 1983 até 1998. A despeito de 15 anos e incontáveis cirurgias de ponte de safena e imensuráveis pesquisas, o erudito texto se agarra a um refrão apologético. Enquanto se preocupa como a cirurgia de ponte de safena funciona, o erudito texto oferece 3 possíveis explicações. 1) O efeito placebo (a teoria que justifica chamar a cirurgia de ponte de safena de uma custosa aspirina). 2) A neurectomia sensorial - o coração permanece o mesmo, mas o paciente não sente mais qualquer dor. 3) O leitor deve prender sua respiração ..., como o erudito texto coloca – a cirurgia provavelmente funciona porque mata o segmento queixoso do coração.

 

Com relação as explicações acima na última edição do Harrison's Principles é citado que “A angina é abolida ou grandemente reduzida em aproximadamente 90% dos pacientes após a revascularização coronária. Embora isto seja usualmente associado com enxertos pérvios e restauração do fluxo sangüíneo, a dor pode também ser aliviada como o resultado do enfarte no segmento isquêmico ou efeito placebo.... A cirurgia de ponte de safena não parece reduzir a incidência de enfarte do miocárdio em pacientes com doença isquêmica crônica do coração. No período peri-operatório (imediatamente após a operação) o enfarte ocorre em 5 a 10% dos casos, mas na maioria das vezes esses enfartes são pequenos... não existindo evidências que a cirurgia de ponte de safena melhore a sobrevida de pacientes com angina estável crônica que tenham doença em uma ou duas artérias.”

 

Moral: A cirurgia de ponte de safena é uma forma médica moderna de tratar friamente um coração dolorido, uma forma de sufocar um "crie de coeur".

 

Parte Sangüínea do ABC da Coronariologia

Problemas arteriais e administração de aspirina marcham de mão em mão pelo mundo afora. As questões são:

 

(a) A aspirina cria uma ‘alta incidência de irritação gastro-intestinal’ com perda de sangue oculto ocorrendo na maior parte das pessoas que tomam-na durante muito tempo, algumas vezes suficiente para causar anemia por deficiência de ferro. Embora coronariologistas coloquem como defesa que a perda de sangue e a anemia são boas porque reduzem a doença arterial das coronárias, tal abordagem resulta provavelmente em fazer um bem, mas cometendo dano real.

 

(b) A aspirina funciona pela inibição da síntese da prostaglandina. As prostaglandinas são aceitas como potentes vasodilatadores coronários, antiagregantes plaquetários, fibrinolíticos e pro-heparina, isto é, com todas ações que são consideradas boas para o coração e anti-DAC. A idéia fixa da aspirina é baseada no argumento de que talvez a prostaglandina que a aspirina inibe não seja tão importante. Porém, o dano que a aspirina pode fazer, facilmente excede o bem que ela, alegadamente, oferece.

 

Os remédios para reduzir o colesterol podem ser ainda outra fraude passada como valiosa para os pacientes. Quando foram decifrados os dados do primeiro teste sobre clofibrate, o remédio pioneiro na redução do colesterol, para completa surpresa dos investigadores, a mortalidade encontrada do grupo tratado com clofibrate foi 25% mais alta do que no grupo de controle tomando placebo. A dieta livre de gorduras e os remédios para redução de colesterol estão sendo crescentemente apontados como responsáveis em promover câncer, depressão, suicídio, e até a própria DAC.

 

Os efeitos colaterais dos remédios para redução do colesterol deveriam ser pesados contra sua vantagem potencial “Como acontece na maioria das intervenções de prevenção primária, um largo número de pacientes saudáveis precisa ser tratado para prevenir um único evento. Para redução do colesterol, pode ser necessário tratar 600 pacientes durante vários anos para prevenir uma única morte ou cinco ou seis eventos coronários não fatais.”

 

Parte Coração do ABC da Coronariologia

Tratar o coração é o menos confiável e representa o aspecto mais controverso aspecto do ABC da coronariologia.

 

Remédios que descansam o coração oferecem, como todos os remédios cardíacos, alguma vantagem a nível cardíaco, mas uma desvantagem para todo o organismo. E a opção do transplante é repleta com formidáveis problemas.

A edição do Times da Índia que exalta as virtudes do coração transplantado tem 'as notícias ruins' no seu suplemento colorido: "Remédios que são dados para prevenir que os pacientes de transplante cardíaco rejeitem seu novo órgão poderão torná-los vulneráveis ao câncer de pele - que representa 25% das mortes de pacientes após o quarto ano seguinte ao transplante. "E, com receio de não esquecer, o câncer de pele é simplesmente um dos muitos problemas vinculados ao transplante. 

 

A questão da ética

A obrigação principal deste esforço de uma avaliação crítica da coronariologia, é enfatizar seu caráter de terapia inerentemente sintomática. Qualquer pretensão de cura, para usar as palavras do neurologista inglês Hughling Jackson, toca a charlatanice.

 

A questão mais profunda é a base ética. O mínimo que a coronariologia poderia fazer é admitir sua falência intelectual, da mesma forma que James Watson, Nobelista, colocou que a pesquisa de câncer é intelectualmente falida, um desperdício fiscal e terapeuticamente inútil. Isto feito,  muitos pacientes, e mais ainda sua família, irão hesitar antes de ficarem arruinados pelo moderno cuidado coronário.

 

Na sua monografia da história da revascularização coronária o cardiologista americano Thomas A Preston devota um capítulo aos ‘fatores econômicos da cirurgia de ponte de safena’onde ele,  questionando o porque dos cirurgiões coronários  fazerem tantas  cirurgias se a base científica está ainda para ser validada, ele conseguiu a resposta de que já que existe um mercado e um comprador o cirurgião não vacila em vender esse procedimento. Thomas A Preston conclui: “Certamente que se a operação fosse um sucesso absoluto no alívio dos sintomas e no prolongamento da vida, seria um justificável luxo econômico a despeito dos lucros em excesso de alguns. Mas, a questão real é se o lado econômico da situação médica influencia na decisão quanto a execução da operação.  A superabundância de cirurgiões, a dependência da maioria dos cirurgiões cardíacos sobre a cirurgia de ponte de safena para a maioria de seus negócios, a organização da entrega do cuidado de saúde médica e pagamento de honorários, e a ausência de limitação sobre o consumidor são todas também forças poderosas que fazem altamente possível que a cirurgia de ponte de safena seja realizada mais freqüentemente nos Estados Unidos do que seria sob um diferente sistema econômico.

 

No fechamento deste artigo, nós somos compelidos  a chamar a atenção dos leitores para o pensamento deformado que pacientes, médicos, cientistas e jornalistas desenvolveram sobre o assunto do cuidado coronário. Uma reportagem no The New York Time Magazine descreve em 1997 um grupo de pacientes cardíacos esperando por um transplante ao custo de $150,000 para a cirurgia e de $30,000 ao ano para os remédios. O lado sinistro da história é que os pacientes esperançosos aguardam pela pessoa certa morrer, rezando pelo mau tempo e estradas escorregadias, de forma que alguém com saúde perfeita ferido na cabeça se ‘torne’ um doador de coração. É um desejo de morte macabro, mas da vida real, para um desconhecido inocente, de forma a continuar seu tênue apego à vida. O aspecto cômico da cobertura do NYT é a admissão de que "Oito de dez receptores de transplante do coração agora vivem pelo menos um ano." O autor do artigo Charles Siebert, que escreveu extensivamente sobre o coração, parece ter claramente negligenciado o fato de que os pacientes estavam 'esperando' por um doador pelo período de pelo menos dois anos e meio, provando simplesmente que os receptores não transplantados sobrevivem aos receptores transplantados tanto em termos de qualidade e quantidade de vida.    

 

Nosso ensaio não almeja ser cínico, desnecessariamente crítico, ou de censura. O mundo médico precisa desesperadamente de pacientes avisados para lidar com médicos bem informados. Isto constitui em si mesmo a forma científica para a coronariologia ética. A ciência médica e a medicina ética não deveriam empanturrar um exercício global de "supressio veri et suggestio falsi" - a supressão teimosa da verdade e a promoção do falso. Tanto quanto o gênero humano sobreviva, existirão corações doloridos, parte do curso natural do envelhecimento. Os coronariologistas serão necessários para mitigar os sintomas e estimular o moral dos pacientes e de suas famílias. Mas, tudo isso terá de ser feito carregando na mente que a coronariologia é uma colcha de retalhos que cobre uma larga variedade de sintomas e sinais sem alterar o curso essencial da trajetória de um individuo.”

 

Referências:

1.  ‘Dil Ka doctor and his state-of-the-heart plans,’ The Sunday Times of India, April 4, 1999, p. 16

2. Evers J: Why practice evidence-based medicine? Medical Times (Mumbai), 29; 1, 4, April 1999.

3. Roberts WC and Maximilian Buja L: The prevalence of thrombi in coronary arteries in fatal acute myocardial infarction. Annals of Internal Medicine, 1970; 72: 781-782.

4. Hurst JW: Obstruction of coronary arteries. Journal of the American Medical Association. 1983; 250: 1763-1765.

5. Vermani R: Pathologic indicators of restenosis. Dr ND Patel Oration, GSM College, KEM Hospital, Mumbai, December 29,1992.

6. Harrison’s Principles of Internal Medicine (Vols 1, 2) McGraw-Hill, NY, Editions 10 to 14, 1983 to 1998, latest edition: p. 2748.

7. British National Formulary, published by British Medical Association and Royal Pharmaceutical Society of Great Britain, Number 35, 1998, p. 195.

8. Lawrence DR et al: Clinical pharmacology, Eight edition. Churchill Livingstone, Edinburgh, 1997, p. 256.

9. Root-Bernstein R and Root-Bernstein M: Honey, mud, maggots and other medical marvels. Houghton Mifflin Boston, 1998, p. 80.

10. Mayes PA: Metabolism of unsaturated fatty acids and eicosanoids, In Harper’s Biochemistry (ed Murray RK et al). Appleton and Lange, Norwalk, 1993, p. 232.

11. Rang HP et al: Pharmacology third edition, Churchill Livingstone, Edinburgh, 1998, p. 277.

12. Singer M and Webb A: Oxford handbook of critical care, OUP, 1998, p. 12.

13. Inglis B: The diseases of civilization. Granada, London, 1981, p. 12.

14. Kothari ML and Mehta Lopa A: Person view, BMJ, 160: 1441,1976

15. Preston TA: Coronary artery surgery: a critical review. Raven Press, NY, 1977.

16. Siebert C: Carol Palumbo waits for the heart. New York Times Magazine. April 13, 1997, 38-45.

 

* ML Kothari, LA Metha, VL Kothari, trabalham no Seth GS Medical College, Mumbai, India        

 

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