Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Glória e Ocaso da Estrofantina No Brasil - Lamentável Postura da Intelectualidade Cardiológica

 

Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista

 

Glória - enquanto durou a benéfica utilização da Estrofantina em nosso meio, como fruto da respeitável influência da Medicina européia sobre a formação dos homens de ciência brasileiros, permanecendo até a década de 70, quando observamos o início do desaparecimento da Estrofantina de nosso arsenal terapêutico; como conseqüência da inexplicável atitude dos cardiologistas brasileiros, de subserviente dependência aos caprichos da cardiologia norte-americana, em sua grande falha por sua inexperiência clínica com a Estrofantina, quando, aqui entre nós, o seu emprego sempre foi soberano e de eficácia comprovada.

 

Ocaso - teve seu início quando os cardiologistas brasileiros, sucessores dos eminentes clínicos gerais estudiosos da prática cardiológica, a partir da Cardiologia recém-nascida, no início da década de 40, com a fundação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, passaram à condição de complacente dependência da Cardiologia norte-americana; que sempre se mostrou indiferente à verdadeira representatividade da virtuosa Estrofantina, na prática cardiológica, desde a sua introdução no cenário mundial em 1905, logo aceita e adotada, com muito sucesso, em nosso país, procedente, especialmente, da França e Alemanha, seguidas mais tarde pela Suíça e Itália.

 

Pela ausência do emprego clínico da Estrofantina nos EUA, por espírito de imitação e falta de respeito às nossas tradições, atingimos o estado de indiferença e ignorância completa, por omissão das lideranças que ornamentam a cardiologia brasileira e que deveriam firmar a prática médica brasileira, dentro dos padrões ecléticos tradicionais, como aproveitamento do melhor que se faz lá fora e sua efetiva manutenção, como demonstração de independência, na escolha do que é melhor para nossa prática médica.

 

Temos perdido, pois, a oportunidade de firmar uma Medicina brasileira e, particularmente, a cardiológica, pelo menos dentro dos nossos padrões tradicionais, por exclusiva omissão das lideranças irresponsáveis, tanto que os jovens cardiologistas de hoje não sabem sequer que a Estrofantina existe e é praticada em outros países adiantados, como excelente e consagrado cardiotônico, por sua eficácia e principalmente, pela tolerabilidade, em uso na Europa de todos os tempos e apenas como parte do nosso passado, constituindo-se, como lamentável equívoco e representando um grande vazio na atualidade.

 

Desde os primeiros tempos de nossa prática clínica, como estudante de Medicina, havíamos nos familiarizado com o emprego da Estrofantina, por via endovenosa de eleição, no tratamento do edema agudo do pulmão e da insuficiência cardíaca congestiva, como medicação inicial de ataque para, depois de atingida a rápida compensação cardíaca, passar à manutenção com o emprego da Digitalina, produto purificado que só em 1942 foi introduzida nos EUA, onde a Digital, sob a forma de pó de folhas, era largamente empregada, mas utilizada de acordo com o consagrado método de Eggleston desde 1912, só introduzido no Brasil na década de 30, com a vantagem do emprego do produto purificado (Digitalina).

 

A Estrofantina K (Kombetin 1/4 mg) ou G (Ouabaine 1/4 mg) era usual e rotineiramente administrada em todos os serviços médicos brasileiros, como a primeira opção para o coração insuficiente.

 

Naquele tempo, nos EUA, não era usual o emprego clínico da Estrofantina, salvo em trabalhos experimentais; enquanto aqui, a mesma tinha sua indicação assegurada como o medicamento de primeira opção nas emergências cardíacas por falência do coração.

 

O seu uso em nosso meio era tão dominante que, já em São Paulo, assistimos o lançamento do Cardiovitol Abbott (Estrofantina K 0,34 mg), imposto àquele Laboratório norte-americano, pelo uso brasileiro de valer-se da droga de maiores virtudes, para o controle de graves condições clínicas de falência cardíaca. O referido Laboratório havia procurado, assim, adaptar-se aos nossos costumes, uma vez que só o produzia no Brasil, enquanto os norte-americanos continuavam a ignorar a referida droga e nós nos ocupávamos em manter a terapêutica consagrada aqui e na Europa.

 

Com a transformação ocorrida no após guerra, quando a Europa perdera a sua influência sobre a Medicina brasileira para os EUA, os mentores de nossa Medicina, naquela época, chegaram até a preconizar o emprego do pó de folhas de Digital, em detrimento de nosso antigo e tradicional relacionamento mais do que secular com a Digitaline Nativelle e sucedâneos, purificados; contrariando assim, nossa velha tradição, o que nos levou a um protesto formal através do trabalho "Notas práticas sobre o emprego da Digitalina: Rev Hosp N. S. Aparecida, 1952;5;464-469".

 

Tal postura decorria das prescrições contidas nos livros norte-americanos recém-chegados ao Brasil, ainda com a recomendação do pó de folhas; enquanto nas revistas norte-americanas eram freqüentes os trabalhos buscando adaptarem-se ao emprego dos produtos purificados; tudo coincidindo com os novos lançamentos aqui no Brasil e também nos EUA dos produtos purificados lançados pelos suíços e ingleses, sob a forma de Lanatoside-C e Digoxina. Esses produtos foram então aceitos e passaram a dominar o mercado brasileiro e norte-americano. Nessa mesma ocasião, os produtos à base de Estrofantina começaram a perder espaço entre nós e poucos, como nós, permaneceram fiéis à tradição terapêutica do nosso país. No início da década de 70, registramos a suspensão de fabricação dos produtos comerciais como o Cardiovitol e Kombetin, permanecendo no mercado apenas a Ouabaine e o Strofopan que, sem mais mercado já naquela época, foram obrigados a suspender sua produção; tanto que temos importado da Alemanha a Estrofantina, para uso em nossos pacientes.  

 

Durante 35 anos de nossa permanência à frente do Instituto de Angiocardiologia do Hospital Matarazzo e Casas de Saúde Matarazzo, mantivemos em uso todos aqueles produtos acima referidos e, até nossa saída daquele Hospital em 1979, permanecíamos com o emprego do Strofopan e da Ouabaine, com o maior entusiasmo e obtendo sempre os resultados magníficos que ditavam a nossa preferência e de acordo com a melhor tradição européia.

 

O desaparecimento da Estrofantina, do arsenal terapêutico brasileiro, resulta da fidelidade dos mentores da Cardiologia brasileira e da dependência subserviente do Médico brasileiro, sobre o que se pratica nos EUA, logo aceito e adotado sem discussão sobre tudo que vem de lá.

 

Assim, o cardiologista brasileiro chegou a esquecer ou simplesmente ignorar a Estrofantina, como agente terapêuticos de grandes virtudes e responsável por grandes sucessos na clínica.

 

Na Europa, a Estrofantina, hoje esquecida aqui no Brasil, tem a sua posição tradicional bem assentada como medicamento de pronta resposta e ótima tolerância.

 

Em nossa prática, continuamos registrando sempre uma rápida e segura resposta terapêutica com a Estrofantina, por via endovenosa, nas seguintes condições:

 

Insuficiência cardíaca congestiva ou Edema agudo do pulmão, partindo de 0,25-050 mg (EV), seguida por injeção de 0,25 mg cada 12 horas por três vezes; depois 0,25 mg cada 18 horas por três vezes e, por fim, 0,25 mg cada 24 horas até a 15ª injeção. Em seguida, o caso passa a ser mantido sob a ação da Digital: Digitalina (Digitoxina) 0,1-0,2 mg/dia; Digoxina 0,25 mg/dia; Lanatoside-C 0,50 mg/dia; a variação na dosagem era determinada pela maior ou menor exigência de cada caso. Com esse modelo, evitamos as grandes doses de Digital, de ataque, certos inconvenientes de tolerância e, rapidamente, atingimos a compensação cardíaca com grande eficácia e tolerância absoluta.

 

Frente a Fibrilação atrial, fazemos a administração da Estrofantina 0,50 mg (EV) como injeção única, seguida 6 horas após com Digitalina em dose média de manutenção diária (0,20 mg); o efeito sobre a condução AV na Fibrilação atrial permanente era observado e, em muitos casos de paroxismos de Fibrilação atrial, registramos o retorno imediato ao Ritmo sinusal, quando então a Estrofantina era seguida por medicação anti-arrítmica, preferencialmente, a Quinidina 0,20 gm 3 x dia (VO) "Associação da Estrofantina-K com a Digitalina na Fibrilação auricular, O Hospital, 1948,33:179".

 

Na prática, o emprego da Estrofantina sempre foi decisivo e o seu imediato efeito é responsável pela clássica administração frente ao Edema agudo do pulmão e Insuficiência cardíaca congestiva; devendo-se respeitar certas regras muito importantes: a Estrofantina não deve ser administrada a pacientes sob digitalização permanente, a não ser após o período de eliminação do resíduo da Digital, por causa da soma de efeitos sobre a excitabilidade miocárdica e do risco da instalação súbita de Fibrilação ventricular, seguida por Parada cardíaca; todavia, a digital pode ser administrada após a compensação cardíaca, pela série de injeções de Estrofantina.

 

Quando da elaboração da Teoria Miogênica do Enfarte Miocárdico (1972), o cardiotônico surgiu como o medicamento específico para a prevenção e tratamento do Enfarte Miocárdico; assim, em nossa primeira experiência clínica para sua prevenção imediata e, portanto, a ser praticada com vistas à sustação da Angina Instável em crescendo, foi eleita a Estrofantina 0,25 mg (EV), por ser um medicamento eficaz, seguro em sua ação e tolerabilidade absoluta. Naquela época, completávamos 31 anos de grande frustração terapêutica, a despeito da corriqueira e infalível previsão clínica sobre a próxima instalação do Enfarte agudo do miocárdio e através da qual nós havíamos constatado em 1945 o fracasso absoluto dos anticoagulantes (Cumarinicos e Heparina) naquela Síndrome Clínica, procurando-se evitar o Enfarte miocárdico, mais tarde constatado em todo o Mundo (1969).

 

Com a administração da Estrofantina-K 0,25 mg (EV) durante 10 dias, em caso de Angina Instável em crescendo e resistente à terapêutica em voga, tivemos a felicidade de constatar a sua imediata sustação após a 1ª injeção e retorno à estabilidade sintomática e miocárdica. Tal efeito foi comprovado, assim, em mais 150 pacientes, com dosagem variável de 0,25 - 0,50 mg/dia durante 6 dias, o que tem sido marcante e muito gratificante, principalmente quando confrontado com o passado de repetidos insucessos.

 

Diante de tal sucesso nunca dantes registrado e que nos parecia a comprovação tácita dos conceitos enunciados em nossa nova Teoria Miogênica, passamos a administrar a Estrofantina nos casos rotulados habitualmente como Enfarte Agudo do Miocárdio. Adotada a mesma posologia de 0,25 - 0,50 mg/dia, durante 6 dias e seguida por Digital ou Proscilaridina-A (VO), em doses médias; chegamos a curiosas constatações: o paciente admitido como enfartado agudo ainda estaria no período enfartante e assim poderia ter o seu processo evitado ou sustado (67%) ou, então, enfartado mas atenuado em 33% dos casos. Isso foi assim atingido, como nova conceituação, em conseqüência dos picos enzimáticos registrados a cada 12 horas durante 6 dias: como inferiores a 3 vezes Normal nos 67% dos casos e acima de 3 vezes Normal (com a média de 5xN) em 33% dos casos. Além disso, as transformações observadas na evolução dos casos, reduzindo as complicações habituais em tais casos e com mortalidade global de 12,2%; sendo marcante o índice de mortalidade registrado de 0,9% nos 67% dos casos registrados com picos enzimáticos inferiores a 3 vezes Normal e de 32% nos casos com picos enzimáticos superiores a 3 vezes Normal.

 

Como prova de confiança absoluta em tais dados, assim conseguidos com a nova terapêutica, resolvemos determinar a Deambulação precoce de 5 dias nos primeiros e de 10 dias nos últimos, com alta hospitalar no dia seguinte, numa época em que no Mundo todo se exigia repouso absoluto no leito durante 50 dias; devendo-se notar que a mortalidade nos primeiros dias após a alta, foi registrada como 0,5% dos casos assim tratados.

 

É lamentável a postura da intelectualidade cardiológica brasileira, abolindo de seu arsenal terapêutico um medicamento que, no passado, era larga e vantajosamente empregado por todos os Médicos da nossa geração e que agora sequer é conhecida pelas novas gerações de cardiologistas; colocando-os apenas como bem conduzidos e dirigidos pelo que praticam e seguem os norte-americanos, limitados ao emprego da Digital e ensaiando inodilatadores inexpressivos, que precisam ser associados aos digitálicos; enquanto a Estrofantina continua a ocupar o seu destacado e tradicional espaço em toda a Europa e sempre distinguida como medicamento de virtudes bem reconhecidas e beneficiando a Humanidade.

 

Continuamos a utilizá-la nas suas indicações determinadas pela falência do coração e principalmente, nos estágios de instabilidade sintomática e miocárdica, bem caracterizados na coronário-miocardiopatia isquêmica como Angina Instável e Enfarte Agudo do Miocárdio.

 

A eliminação da Estrofantina, do arsenal terapêutico brasileiro, decorreu da lamentável postura da intelectualidade cardiológica.

 

Emprego tradicional no Brasil, reconhecido até pelos norte-americanos como participante do pólo latino-americano e ao lado do pólo europeu, onde teve sua origem. De repente, o Brasil perde sua posição destacada, porque nos EUA a Estrofantina nunca foi utilizada na Clínica e, só de passagem, tem sido identificada na experimentação.    

 

Veja também:

A Saga da Estrofantina na Prevenção e Tratamento do Enfarte do Miocárdio e, a Recente e Surpreendente Descoberta de que Ela é um Hormônio Natural do Organismo Humano.

 

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