Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Coração do Idoso, Aparentemente Normal, Deve ser Considerado Vulnerável

 

Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista

 

O organismo, como um todo, com o passar dos anos, vai apresentando transformações em sua própria estrutura e no mecanismo de recomposição celular ininterrupta, as quais são progressivas e, segundo o órgão, vai sofrendo mudanças em sua própria funcionalidade e, neste particular, é constatada com muita facilidade, até pelos leigos, na faixa etária logo acima dos 40 anos, o que acontece na caracterização da "presbiopia ou vista cansada".

 

Também nessa faixa etária, os atletas campeoníssimos em todas as modalidades do esporte, passam a ser considerados "velhos" e incapazes de manterem as marcas das conquistas atingidas no passado recente, quando na plenitude do seu condicionamento físico e que resultaram na qualidade de pleno funcionamento dos sistemas muscular, neuroendócrino, humoral, visual e auditivo que representam o conjunto de funções que garantem a atividade ideal máxima ou prática privilegiada; caracterizada pelos reflexos automáticos que proporcionam as excepcionais marcas, em cada modalidade esportiva.

 

Assim, os "velhos", atingindo os 40 anos, data essa saudada sempre pelo adágio popular de que "a vida começa aos 40", ao que os irreverentes completam dizendo "mas cessa a garantia!"

 

Na realidade, representa o tempo da aposentadoria dos atletas em geral e não adianta querer contrariá-la, porque irão certamente experimentar a realidade expressiva "de como era verde o meu vale!"

 

A presbiopia mostra a realidade do tempo, que exige a "armação" para os olhos enxergarem com nitidez os detalhes minúsculos a curta distância.

 

Também o sistema muscular que se mostra modificado pela influência do tempo de vida, é responsável pela baixa capacidade de manter-se o condicionamento físico mostrado até aquela faixa etária.

 

Devemos considerar que o coração, como órgão essencialmente musculoso e principal no contexto geral, também vai experimentando transformações em sua microestrutura, com características variações da normalidade. Comporta-se, assim, dentro das suas condições normais, mas não será o mesmo à medida que a idade vai avançando e atingindo a maturidade; acontece, naturalmente uma certa limitação sua em garantir ao todo a mesma qualidade, na assistência integral de todos os órgãos e isso tem sido identificado como evidências da presbicardia.

 

Esta indica, tão somente, o coração do idoso e deve ser diferenciada do conceito de doença cardíaca, cujas manifestações caracterizam a disfunção quantitativamente representada por nítida sintomatologia, frente à demanda física; enquanto na presbicardia a normalidade é patente e a variação funcional é qualitativamente apreciada.

 

Da comparação do estado da presbicardia com o da própria patologia coronário-miocárdica, mais freqüente no idoso,  há nítida diferença, porque nesta última observa-se, freqüentemente o quadro sintomático responsável pelo desenvolvimento da condição clínica, que passa a ser identificada como entidade bem caracterizada e terá, a curto prazo, maior repercussão e comprometimento do que se ocorresse em período anterior à presbicardia.

 

Isso acontece porque a presbicardia apresenta-se como estado mais vulnerável frente aos agentes agressivos, tais como: sobrecargas físicas representadas por infecções, esforços físicos exagerados, re-hidratação ou transfusões de sangue mal conduzidas e estresse psico-emocional.

 

A presbicardia ou envelhecimento do coração, é associada com demanda reduzida, função miocárdica normal em repouso e relativamente diminuída em sua capacidade máxima frente ao exercício.

 

No idoso, a condição clínica mais freqüentemente registrada é a coronário-miocardiopatia, que participa do encurtamento da sobrevida e das complicações fatais; daí, faz-se necessário o criterioso controle dos fatores de risco: hipertensão arterial, sistólica e/ou diastólica, diabete, obesidade, fumo, álcool, distúrbios dos lipídeos e da função renal, taquiarrítmias cardíacas e declínio da capacidade vital, infecções em geral e, particularmente, do aparelho respiratório.

 

Os pulmões, que também sofrem transformações estruturais com a idade avançada, mostram um declínio na capacidade vital pela freqüente instalação de enfisema pulmonar, responsáveis pela defeituosa entrada de oxigênio e, conseqüente, redução de oxigênio basal a ser utilizado, que deve ser responsável pela freqüência cardíaca mais rápida, frente aos esforços maiores, como acontece nos indivíduos normais, sem condicionamento físico.

 

A freqüência cardíaca, mais baixa no idoso em repouso, deve resultar do simples princípio de que, na relativa baixa atividade física, há uma correspondente exigência menor, quanto às substâncias nutrientes e energizantes, representando, portanto, um generalizado mecanismo de adaptação à atividade física menor, desenvolvida pelo idoso.

 

Nessas condições, o idoso normal não deve procurar executar atividade física exagerada, que ultrapasse sua tolerância física, porque pode gerar sintomatologia alarmante, mesmo em condições normais de sua estrutura vascular e miocárdica; exigindo, portanto, um necessário condicionamento físico gradual, para poder atender suportar atividade de moderada magnitude.

 

O coração do idoso desenvolve trabalho compatível com sua atividade física limitada e exige menos para sua manutenção normal plena.

 

Acreditamos que, em defesa de uma velhice mais ativa e sadia, se imponha ao coração um regime de atividade compatível com suas condições estruturais e funcionais, dentro da segurança de se manter a sua integridade, representando a sua tolerância individual. Ademais, não se deve admitir o estresse físico e/ou psicoemocional, pretendendo-se rejuvenescer o coração do idoso; porque, ultrapassando-se seus limites, o esforço representará agressão por sobrecarga danosa e transformadora da própria fisiologia do coração idoso, em processo de risco por desenvolvimento de aspectos fisiopatológicos.

 

Os exercícios físicos, sem o necessário controle técnico, poderão afetar o coração do idoso e torná-lo susceptível de transformações estruturais acentuadas, por exaustão miocárdica, aumentando a sua vulnerabilidade e, portanto, com maiores probabilidades de encurtamento da sobrevida.

 

Nos primeiros anos de nossa atividade, à frente do Instituto de Angiocardiologia do Hospital Matarazzo e Casas de Saúde Matarazzo, tínhamos que dar sustentação aos cirurgiões gerais e especializados, julgando seus pacientes no pré-operatório imediato e, muitas vezes, durante o curso da operação, por problemas desencadeados pela anestesia geral.

 

Os pacientes idosos (>50 anos) mereciam análise mais detida e aqueles que apresentavam isoladamente sinais eletrocardiográficos e radiográficos, decorrentes de processos vários, como: coronariopatia crônica assintomática ou sintomática; de valvulopatia degenerativa crônica ou reumática e de miocardiopatia primária com hipertrofia cardíaca, interpretados como portadores de cardiopatia crônica, mesmo com capacidade funcional conservada, eram submetidos à terapêutica cardiotônica, preferentemente representada pela estrofantina G ou K (1/4 mg. EV/dia), durante 5 dias, a partir do dia do ato operatório, a título preventivo; muito embora a ortodoxia não admitisse o seu emprego, em casos sem sinais evidentes de insuficiência cardíaca.

 

A partir da década de 50, em alguns casos, empregamos alternativamente o Lanatoside-C (0,40 mg. EV) ou a Digoxina (0,50 mg., EV) também durante 5 dias; produtos purificados, também de origem européia, recém lançados em nosso meio.

 

Os pacientes assim medicados, com o espírito de se prevenir o desencadeamento da insuficiência cardíaca no pós-operatório, quase sempre sobrecarregado por re-hidratação e transfusões de sangue, mostravam seguimento pós-operatório muito tranqüilo e sem complicações.

 

 Paralelamente, começávamos a registrar com significativa freqüência, quadro clínico de insuficiência cardíaca moderada, no pós-operatório de pacientes previamente considerados normais, do ponto de vista cardiológico. Tais casos serviram para que passássemos a considerar o coração do idoso como vulnerável, a despeito de mostrar-se aparentemente normal aos exames físico, eletrocardiográfico e radiográfico. Curiosamente, apresentavam-se como presa fácil de processos infecciosos agudos, sobrecargas físicas, psico-emocionais ou hemodinâmicas, possivelmente responsáveis pelo registro de graus variáveis de insuficiência cardíaca, com ou sem arritmias cardíacas.

 

Por isso, passamos, também, a adotar a medicação cardiotônica em todos pacientes com mais de 50 anos, como medida preventiva da insuficiência cardíaca, representando uma nova rotina em nosso Hospital e como modificação de critério na Cardiologia de então, em decorrência da observação de absoluta tranqüilidade nos pós-operados assim tratados. Logo depois, passamos a analizar tais casos, que apresentavam eletrocardiograma normal e eram clinicamente assintomáticos, submetendo-os ao ECG de esforço, que servia para identificar o contingente de pacientes coronariopatas silenciosos ou assintomáticos; ficando bem presente em nossa mente, a partir daí, que o ECG em repouso só tem significado essencial, quando patológico.

 

Esse novo conceito foi fortalecido, principalmente, após o nosso trabalho sobre "Eletrocardiograma de esforço na angina do peito (Arq. Bras Cardiol. 1954;7:137)", quando registrávamos casos de coronariopatia sintomática com ECG normal, em repouso e estudávamos, comparativamente, com os índices da prova do duplo degrau de Master, registrando o ECG de esforço coincidente, com o aparecimento da dor anginosa.

 

Ao longo de nossa atividade, temos registrado aspectos curiosos na vida do idoso, tal como seja o aparecimento de manifestações sintomáticas da coronáriopatia, bem caracterizadas e com intervalos variáveis de poucos meses a 1, 2 e 3 anos, após uma avaliação anterior, quando os exames haviam sidos negativos e sem quaisquer sinais de isquemia relativa aos esforços ensaiados; provavelmente, isso ocorreria em decorrência do equilíbrio ainda existente entre a demanda e o suprimento de oxigênio, mesmo na presença de comprometimento aterosclerótico das artérias coronárias.

 

Ultimamente, tais observações nos têm levado a admitir, por absoluta medida de segurança no idoso que nos procura, a extensão da terapêutica preventiva do enfarte miocárdico, insuficiência cardíaca e morte súbita, empregada nos casos declarados de coronário-miocardiopatia isquêmica desde 1972.

 

Assim, acreditamos que devemos poupar os idosos assintomáticos de certas surpresas desagradáveis e agudas, como a instalação do enfarte agudo do miocárdio, de maneira abrupta e inesperada e do risco imediato de um quadro grave e até fatal, dependente da própria extensão do processo isquêmico e repercussões com graves arritmias; além do grande risco de serem levados à cirurgia de revascularização miocárdica.

 

A justificativa seria de que, na introdução da terapêutica representada pela digital em baixa posologia - como medicação antienfarte - teríamos uma medicação simples e com objetivo essencial de evitarmos surpresas desagradáveis, como a instalação do enfarte miocárdico; apresentando, como  justificativa para seu emprego, as baixas incidências de enfarte (2.1%) e da mortalidade (8%), registradas nos casos de coronário-miocardiopatia sem enfarte prévio, no período de 17 anos, sob o permanente emprego do cardiotônico + dilatador coronário. Este último, tido por nós como medicação antiangina, sería introduzido tão somente quando se registrassem manifestações clínicas da coronário-miocárdiopatia.

 

Essa conduta, que estamos ainda para introduzir em nossa prática, estaria buscando satisfazer uma sensação de insegurança que domina o nosso espírito há muito tempo, quando atendemos idosos sem manifestações clínicas e exames que nos levam a considerá-los como absolutamente normais, quando em verdade, os consideramos possivelmente vulneráveis dentro do futuro próximo!  

 

Tal conduta será posta em execução, para uso permanente, desde que o idoso concorde e participe do princípio de que hoje está são e, no amanhã, só Deus sabe; parecendo-nos, portanto, melhor prevenir do que curar!

 

Tudo isso porque nos espelhamos nos casos passados e, principalmente, naqueles que achamos devidamente tratados durante os últimos 24 anos com nossa rotina terapêutica, imposta dentro dos preceitos da Teoria Miogênica do Enfarte do Miocárdio, elaborada por nós em 1972.   

 

 * O presente artigo “Coração do Idoso, Aparentemente Normal, Deve ser Considerado Vulnerável” foi extraído de capítulo com o mesmo título do livro "Remédio Boicotado Substitui Ponte de Safena", Mesquita, QHde, cujo resumo pode ser visto em http://www.infarctcombat.org/livros/icem.html

 

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