Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Medicina Baseada em Evidências: Tendenciosidades Prejudicam o Conceito

 

A medicina baseada em evidências tem sido considerada por muitos como um Santo Gral da prática médica sendo definida como um consciente, explícito e judicioso uso da melhor evidência corrente na tomada de decisões para o cuidado médico de pacientes individuais. Esse movimento parte da hipótese de que as ferramentas e técnicas recentemente desenvolvidas poderiam ajudar os praticantes da “arte de curar” a entenderem melhor e o que funciona no tratamento dos pacientes.

 

O argumento e aspecto chave para a medicina baseada em evidências foi o desenvolvimento da pesquisa de resultados, com estudos sistemáticos e de larga escala, para verificação dos efeitos das diferentes ferramentas de diagnósticos ou terapias, quando aplicadas a um largo número de pacientes. Isto foi facilitado pelo largo uso de computadores para registro e análise de dados médicos e a padronização de dados de combate e de tratamento tornando-se, teoricamente, possível conhecer mais precisamente e certamente o que é, e o que não é, a terapia efetiva.

 

Entretanto, como se costuma dizer popularmente, na prática a teoria é outra. Para alguns o conceito da medicina baseada em evidências desenvolveu-se a partir da crescente compreensão de que muitos testes e tratamentos introduzidos na prática clínica são de benefício não provado ou incerto (1).

 

De outro lado estão acontecendo diversas críticas ao conceito da medicina baseada em evidências apontando desvios nos estudos para seu desenvolvimento, os quais comprometem a obtenção de resultados conclusivos que são usualmente reunidos em diretrizes/consensos, pelas sociedades médicas especializadas.

 

Segundo David Naylor existe um enorme número de zonas cinzentas na medicina baseada em evidências e uma crescente necessidade de aprender como responder a essa zona de incertezas. Naylor diz que este movimento precisa se mover além da clássica medicina baseada em evidências, para incorporar valores multiculturais, organizacionais, centrado no paciente, e baseado na realidade e no contexto de cuidados da saúde (2, 3).

 

Nuala P Kenny diz que a ética da competência é um componente essencial da “boa” medicina e a única contribuição do movimento de reforma que desenvolveu a tradição de Hipocrates. O Medo de que a medicina baseada em evidências suprimirá a arte na medicina precisa ser endereçada. Divergência da prática do padrão baseado em evidências precisa ser justificada. Esta justificativa requer estudos empíricos e um entendimento dos limites dos métodos científicos na prática clínica. Diz ainda que existem barreiras para o uso da boa ciência por médicos conscientes. Cita que entre estas barreiras estão: a falta de evidência útil, falta de consenso, uso de evidências não apropriadas, retardamento de tempo na difusão e no entendimento, decisões não relacionadas aos resultados de saúde, valores divergentes e variáveis, falta de responsabilidade, julgamento e tradição, privacidade e confiabilidade, e desenvolvimento descoordenado dos sistemas de informação de saúde. E, que cada uma dessas barreiras precisa ser cuidadosamente estudada para que respondam apropriadamente.

 

Para Nuala P Kenny os dados científicos não podem guiar diretamente a maioria das decisões médicas. Segundo ele não existem suficientes testes aleatórios ou estudos epidemiológicos. E que não existem, virtualmente, estudos sobre a ordenação apropriada dos testes. Comenta, finalmente, que os testes clínicos aleatórios se tornaram o padrão de ouro, mas que seu impacto é maior quando ele pode estabelecer um amplo princípio terapêutico (4).

 

De acordo com editorial do British Medical Journal, os testes controlados representam para alguns o mais importante desenvolvimento da medicina deste século, sendo vistos como ferramentas de grande ajuda para tirar da prática médica o sentido da subjetividade. Entretanto, conforme o editorial, vieram junto com muitas deficiências como, por exemplo: Os testes são geralmente muito pequenos, muito curtos, de qualidade pobre, e pobremente apresentados, além de endereçarem a questão errada. Inadequações metodológicas distorcem os resultados. Poucos testes incluem medidas adequadas de qualidade de vida. Os dados quanto aos custos são pobremente apresentados. Os aspectos éticos dos testes são freqüentemente negligenciados. O ponto de vista dos pacientes não é analisado ou é esquecido, e participantes nos testes freqüentemente têm um limitado entendimento do que está acontecendo. Testes usualmente são pobremente administrados. Marqueteiros podem usar os testes para levar adiante seus próprios interesses de lucro, etc...(5).

 

Ted J Kaptchuk relembra que a interpretação de dados é inevitavelmente subjetiva e pode por si mesma resultar em tendenciosidades. Para ele a maior parte das tendências ocorrem após a coleta dos dados. Algumas vezes, no entanto, a convicção pode afetar a coleta de dados criando tendenciosidades na orientação. Ou seja, a possibilidade que a própria  hipótese introduza preconceitos e erros e se torne uma determinante nos resultados experimentais. Cita, por exemplo, que numerosos estudos notaram que os testes controlados aleatórios, patrocinados pela indústria farmacêutica, consistentemente favorecem novas terapias. Diz, também, que os resultados das pesquisas parecem ser afetados por aquilo que o pesquisador está procurando (6).

 

Seleções tendenciosas no processo de consentimento informado dos pacientes (7) ou na escolha de pacientes para favorecer determinadas terapias (8, 9, 19), também podem acontecer.

 

Após a coleta de dados existe, ainda, a possibilidade de sua manipulação para mascarar os resultados das pesquisas, através do uso de truques e maquiagens estatísticas. Entre essas estratégias estatísticas está a da apresentação de números focando a redução do risco relativo ao invés da redução de risco absoluto, na procura de ampliar os benefícios de determinada terapia ou medicamento, impressionando e iludindo médicos menos atentos e pacientes em geral (10, 11).

 

Os perigos da meta-análise, e mesmo “fontes de qualidade”, precisam ser tratadas com alguma suspeição. Forças obscuras tais como publicações tendenciosas, interesses financeiros da indústria farmacêutica, bancos de dados incompletos, e fraudes nas publicações comprometem e desvirtuam os resultados das meta-análises (12).    

 

Outro editorial do British Medical Journal diz que, em teoria, a agregação de dados de múltiplos testes deveria aumentar a precisão e exatidão de qualquer resultado combinado. Mas a combinação de dados requer um ato de fé: presume-se que as diferenças entre estudos são primariamente devidas ao acaso. De fato, as diferenças ou extensão dos efeitos do tratamento podem ser causadas por outros fatores, incluindo sutis diferenças nos tratamentos, populações, medida dos resultados, o projeto de estudo, e a qualidade do estudo. Conseqüentemente a meta-análise pode gerar resultados enganosos por ignorar significativas heterogeneidades entre estudos, fixando os preconceitos em estudos individuais, e introduzindo mais preconceitos através do processo de estudos de descobertas e na seleção de resultados a serem combinados (13).  

 

Mathias Egger e colegas sumarizam em artigo sobre outras armadilhas da meta-análise quando aplicada aos estudos observacionais: 1) A meta-análise de estudos observacionais é tão comum como a meta-análise de testes controlados. 2) Confusão e tendenciosidades na seleção muitas vezes distorcem os achados dos estudos observacionais. 3) Existe o perigo de que a meta-análise de estudos observacionais produza resultados bastante precisos, mas igualmente espúrios. 4) A combinação estatística de dados não deveria, portanto, ser um componente proeminente nas revisões dos estudos observacionais. 5) O ganho é maior pelo cuidadoso exame das possíveis fontes de heterogeneidades entre os resultados dos estudos observacionais. 6) Revisões de qualquer tipo de pesquisa e dados deveriam usar os mesmos princípios sistemáticos (14).

 

Hans Melander e colegas investigaram o impacto causado por múltiplas publicações, publicações seletivas e relatórios seletivos em estudos patrocinados por companhias farmacêuticas. Concluíram que os relatórios seletivos (apresentando apenas resultados favoráveis) foram a maior causa de tendenciosidades (15).

 

As múltiplas publicações (relatórios redundantes através de diferentes autores) foram discutidas por Bernard Lown, no Procor Conference. Ele considera que essa prática ridiculariza a revisão entre pares e mina a confiança na informação científica gerada pela meta-análise (16).

 

Joel Kauffman mostra alguns exemplos onde testes aleatórios controlados usando placebo não são livres de tendenciosidades, e que a falha de não se incluir a taxa de mortalidade por todas as causas pode ser extremamente enganosa, da mesma forma que a apresentação de riscos relativos sem mencionar os riscos absolutos ou NNT. Outros exemplos mostram como as conclusões citadas no resumo podem não estar de acordo com os dados do corpo do trabalho, ou não falam toda a verdade. Enquanto outros trabalhos usam objetivos finais espúrios ou protocolos de teste enganosos para favorecer um resultado desejado (20).

 

Existem também riscos de que as evidências possam ser forjadas por preconceitos seculares. Quando acreditamos que algo é verdadeiro acabaremos conseguindo através da experimentação provar ou demonstrar a sua veracidade. Basta escolher as variáveis certas e aplicar os métodos estatísticos adequados, que qualquer coisa poderá ser provada ou demonstrada. Este é um dos aforismos fundamentais da ciência crítica .

 

Além disso, existe cada vez mais uma uniformização no pensamento entre os médicos tendo em vista que a maioria costuma receber informações pelas mesmas fontes, podendo estas, muitas vezes, sofrerem tendências na seleção e escolha de matérias a serem publicadas.

 

Genival Veloso de França, oportunamente e apropriadamente, coloca: "A própria expressão "evidência" mostra-se inconsistente, pois se diz que algo é evidente quando prescinde de prova, ou quando dispensa uma justificativa. Evidente é o que se mostra notório. A evidência é inimiga da prova. Ela é a consagração da verdade". Diz ainda que um dos riscos da medicina baseada em evidências é a tendência das conclusões das revisões continuadas ser mantida pela aceitação de trabalhos que somente se reportam as conclusões que se ajustam as esperadas e não aquelas que revelam resultados adversos ou que não se enquadram em uma determinada linha de critérios estabelecida na seleção de artigos de revisão, deixando-os de fora, por razões nem sempre justificadas (17).

 

Por essas e por outras razões continuam a acontecer questionamentos se a medicina baseada em evidências pode fazer mais mal do que bem. Para Myriam Huninck a evidência não é o bastante. Ele diz: "nós precisamos nos comunicar com nossos pacientes, escutar suas preocupações, deduzir seus valores, estar envolvidos, e realmente cuidar deles. Nós também precisamos integrar as evidências com os valores e preferências dos pacientes. Cuidar dos pacientes é um processo complexo: ele requer evidência, pensamento crítico, comunicação, julgamento, intuição, e principalmente - um cuidado delicado e carinhoso" (21).

 

Mas, como diz Kevin Paterson: “As pessoas em geral, incluindo médicos, têm a tendência de ver o que elas esperam ver. É a premissa de cada ilusionista no jogo de cartas. Se faz sentido de que o tratamento irá funcionar – ou se alguém ganha dinheiro quando ele funciona – então o médico irá, com confiança inquietante e desalentadora, perceber que ele de fato funciona" (18).

 

  Referências:

1. Evers J, Why practice evidence-based medicine? Medical Times (Mumbai), 29; 1: April 1999.

2. Naylor CD, Grey Zones of Clinical Practice: some limits to evidence-based medicine. Lancet 1995;345:840

3. New paradigms, amid skepticism colour evidence-based medicine meeting. Lancet 1999;354:9186

4. Nuala Kenny, Does good science make good medicine? Can Med Assoc 1997;157:33-6

5. Fifty years of randomized controlled trials. BMJ 1998; 317

6. Ted J Kaptchuk, Effect of interpretive bias on research evidence, BMJ 2003;326:1453-5

7. Nina Hannover and Jens Peter Kampmann, Selection bias introduced by the informed consent process, Lancet 2003;361:9373

8. Seleção tendenciosa nos pacientes procura favorecer estratégias invasivas na comparação com o tratamento médico. (artigo)

9. A Terapia de Reposição Hormonal e os riscos cardiovasculares. (artigo)

10. Aspirina na Prevenção do Enfarte. Os Eventuais Benefícios Superam os Riscos Potenciais?. (artigo)

11. Estatinas na Prevenção: Muitos riscos, poucos beneficiados! (artigo)

12. Des Spence, Interpreting the evidence. BMJ 2002; 325:587

13. Editorial, C David Naylor, Meta-analysis and the meta-epidemiology of clinical research, BMJ 1997; 315:617-619

14. Matthias Egger e cols, Meta-analysis spurious precision? Meta-analysis of observational studies, BMJ 1998;316:140-144

15. Evidence b(i)ased medicine – selective reporting from studies sponsored by pharmaceutical industry: review of studies in new drug applications, Hans Melander e cols, BMJ 2003;326:1171-1173

16. Bernard Lown, Subvertido o poder das meta-análises (artigo)

17. Genival Veloso de França, Los riesgos de la medicina basada em evidencias, Conferencia en el I Congresso Internacional y Segundas Jornadas de Gestión de Riesgos en atención de salud, Santiago de Chile, 11 y 12 de abril de 2003. (texto)

18. Kevin Patterson, What Doctors Don’t Know (Almost Everything), The New York Times Magazine, May 5, 2002.

19. Chalmers TC, Celano P et al. Bias in treatment assignment in controlled trials. N Engl J Med, 309; 1358-61: 2003

20. Joel M Kauffman, Bias in recent papers on diets and drugs in peer-reviewed medical journals. Journal of American Physicians and Surgeons, V9;N1: 2004

21. M G Myriam Hunink, Does evidence based medicine do more good than harm? BMJ 2004;329:1051 (30 October)

 

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