Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Como Evolui A Doença Coronária

 

Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista

 

O coronário, na sua grande maioria, é portador de aterosclerose coronária (artéria endurecida, estreitada e sem elasticidade) em uma, duas ou nas três coronárias maiores, responsáveis pelo suprimento do sangue (oxigênio e outros elementos vitais) para os segmentos miocárdicos dependentes que são ricamente vascularizados.

 

Cada artéria coronária normal tem a seu cargo a nutrição e oxigenação do miocárdio dependente e atende a todas solicitações da demanda ou trabalho imposto ao coração com quotas maiores de sangue (oxigênio); contudo, se a coronária é estreitada, endurecida e de calibre fixo (aterosclerótica), o suprimento de sangue via de regra é sempre o mesmo e não acompanha as exigências do miocárdio, diante das variações da atividade física diuturna, do que resulta um déficit de suprimento e da quantidade de oxigênio que é conhecido como isquemia miocárdica.

 

Naqueles pacientes sensíveis, portadores de angina do peito estável e sintomática em que se reconhecem a causa e o efeito, a isquemia miocárdica produz dor no peito que é o sinal vermelho da vida do anginoso; sintoma de advertência que nos tem levado a caracterizar o anginoso como um privilegiado dentro da categoria dos coronários; uma vez que, os assintomáticos, não tendo aquela proteção, estão sujeitos a um risco maior.

 

No momento da isquemia miocárdica, o segmento do músculo cardíaco afetado perde sua força contrátil por falta do oxigênio, enquanto durar a isquemia; mas desaparecida a isquemia, restabelece-se o equilíbrio coronário-miocárdico e a contratilidade retorna ao normal. Esses aspectos repetem-se a cada eventualidade isquêmica.

 

O grau do esforço físico causador da isquemia miocárdica é variável e próprio a cada paciente, sendo assim considerada como tolerância ao esforço, inerente a conduta de cada um e reconhecida dentro de parâmetros individuais.

 

Durante a isquemia miocárdica provocada por esforço, o efeito doloroso cessa após a simples interrupção do esforço desencadeante.

 

No entanto, durante o processo anginoso produzido por emoções, a única maneira de se aliviar a dor é com o auxilio do Dinitrato ou Trinitrina sublingual, porque não se pode parar uma emoção a meio caminho, em conseqüência dos mecanismos fisiológicos e bioquímicos decorrentes da emoção. A emoção produz no organismo a auto-elaboração de substâncias químicas (adrenalina e noradrenalina) estimuladoras do nervo simpático que, liberadas no sangue, vão produzir aumento do número de pulsações (batimentos cardíacos), da pressão arterial, da força do coração e da quantidade de sangue ejetado por minuto, resultando em aumento do trabalho do coração e maiores exigências de oxigênio que, no coronário, como costuma acontecer frente ao esforço físico, desencadeia a isquemia miocárdica e o processo anginoso.

 

Como se vê, cada isquemia miocárdica produzida por esforço ou emoções, repercute sobre o segmento do músculo cardíaco dependente da coronária afetada e representa uma agressão a estrutura miocárdica que deve ser respeitada e evitada. Ao longo do tempo, repetidas manifestações isquêmicas sobre os mesmos segmentos miocárdicos, agredidos assim, vão sofrendo transformações estruturais e ficam diferentes dos segmentos circunvizinhos não isquêmicos, contrastando as áreas de miocardiosclerose ou doença miocárdica segmentar isquêmica com a massa miocárdica circundante de estrutura normal.

 

Pode-se arriscar, dentro da lei das probabilidades, a previsão de que os atuais segmentos miocárdicos isquêmicos poderão ser a sede de um futuro enfarte. Quando somente uma das coronárias maiores é afetada pelo processo aterosclerótico, o seu segmento miocárdico dependente vai gradualmente sendo marcado perante as áreas circunvizinhas normais, como área diferente na maneira de se contrair o de participar harmonicamente como ocorre no coração normal. Por causa dessa distorção da anatomia normal do coração alterando o seu ventrículo esquerdo - cavidade cardíaca mais importante por que é responsável pelo bombeamento do sangue para todo o corpo humano - especialmente a contratilidade miocárdica segmentar mostra-se deficiente em relação aos demais segmentos normais. É evidente que, na afecção coronária, os efeitos isquêmicos sobre o segmento miocárdico dependente, interferem diretamente na harmonia da contratilidade global do ventrículo esquerdo, mostrando fraqueza do segmento isquêmico e exaltação contrátil dos segmentos normais, caracterizando-se assim um desnivelamento de contratilidade entre esses segmentos miocárdicos - constituindo o confronto intersegmentar e tem significado especial na escolha do agente terapêutico. Daí, o nosso enfoque terapêutico deve produzir o nivelamento dos segmentos miocárdicos isquêmicos e não isquêmicos pela ação do cardiotônico e fazer cessar o confronto intersegmentar.

 

Se duas ou três coronárias maiores são comprometidas simultaneamente, os efeitos de repercussão referidos no caso de uma coronária afetada sobre o segmento miocárdico dependente, passariam a ser impostos a dois ou três segmentos miocárdicos ao mesmo tempo; então, a resultante seria de maior extensão e participação do miocárdio ventricular no processo patológico e também se poderia pensar na possibilidade futura de ocorrer enfarte em um dos segmentos isquêmicos e possivelmente o mais atingido ou então se declarar a insuficiência cardíaca que é decorrente de comprometimento global ventricular acima de 30% de sua área.

 

Como se vê, o comprometimento concomitante de dois ou três segmentos miocárdicos dependentes de cada artéria coronária afetada, poderia desenvolver uma certa harmonia patológica, sem prevalência absoluta de qualquer dos segmentos miocárdicos envolvidos, também o confronto intersegmentar seria relativo porque o comprometimento figurado é generalizado. Nessas condições, a terapêutica clínica com o emprego do cardiotônico, parece atender a proposição específica da prevenção do enfarte e também da insuficiência cardíaca.

 

A tendência natural do muito pouco conhecido processo aterosclerótico é evolutiva, gradual e inexorável, no qual as paredes arteriais são transformadas, tornando-se endurecidas, sem elasticidade e com calibre vascular reduzido em todo seu trajeto.

 

Quando coincide com nítidos desvios do metabolismo das gorduras (lipídios totais, triglicérides, colesterol, etc.) e dos hidratos de carbono que exigem controle terapêutico e dietético, estabelece-se uma aparente relação de causa e efeito; entretanto, freqüentemente observamos ateroscleróticos coronários sem quaisquer desvios daqueles elementos dosados no sangue, o que parece complicar e abalar os conceitos tradicionais quanto a causa da aterosclerose.

 

Há certos mistérios ainda não desvendados quanto ao processo aterosclerótico coronário, curiosamente registrado em recém-nascidos ou jovens das duas primeiras décadas, falecidos de enfarte, e nos quais são constatados processos de calcificação de uma ou mais artérias coronárias extramurais, isto é aquelas grandes coronárias que estão situadas fora ou na superfície do coração. Tais achados confundem todos os ensaios de investigadores e cientistas que procuram entender e explicar as razões do aparecimento dessa patologia em pacientes tão jovens e a confusão aumenta ainda mais quando se sabe que as artérias coronárias menores, penetrantes na parede do músculo cardíaco ou intramurais, estão isentas de processo aterosclerótico.

 

Como dizíamos, os processos ateroscleróticos coronários são evolutivos e a tendência natural é atingir, gradualmente, o fechamento ou obstrução completa da artéria coronária afetada e freqüentemente sem produzir enfarte do segmento miocárdico dependente, apesar de ser sede de sofrimento estrutural miocárdico, isquêmico e antigo, bem caracterizado evolutivamente pela sintomatologia clínica ou até mesmo de evolução silenciosa como já temos referido. Todavia, o contrário desse exemplo tem sido comumente constatado, ou seja, a ocorrência de enfarte miocárdico em pacientes com artérias coronárias normais, aterosclerótica ou com pontes de safena pérvias, isto é, sem obstruções completas dos vasos que são responsáveis pelo segmento miocárdico enfartado.

 

Apesar de tudo, a Natureza é muito sábia e pródiga em sua maneira de atender, socorrer e contornar, com os recursos próprios, o extenso comprometimento de uma, duas ou três coronárias maiores, evoluindo inexoravelmente para a obstrução completa. A medida que o calibre arterial coronário vai se reduzindo pelo endurecimento aterosclerótico, ao se atingir o fechamento quase completo ou completo da luz do vaso, paralelamente vão se abrindo e aumentando de calibre pequenas artérias colaterais, pré-existentes, anatomicamente e desde o nascimento, portanto congênitas, mas funcionalmente inexistentes, isto é, não participantes. Estas artérias assim envolvidas, ao assumirem grandeza e funcionalidade efetiva vão constituir uma fascinante e admirável rede de circulação coronária colateral, que tem por finalidade específica socorrer o segmento miocárdico isquêmico que vai perdendo o seu suprimento pela artéria coronária principal, representando uma evidente e promissora nova fonte de oxigênio para aquele segmento miocárdico despojado do seu suporte anterior.

 

Essa circulação coronária colateral tende a se intensificar a longo prazo, assumindo de fato uma auto-revascularizacäo miocárdica muito importante e capaz do ser valiosa na prevenção do enfarte miocárdico e da insuficiência cardíaca, desde que o paciente não a submeta a sobrecargas superiores a sua competência física e funcional.

 

A circulação coronária é realmente uma alternativa automática e espontânea que ocorre como conseqüência natural da obstrução do caminho arterial principal, independente de quaisquer manobras terapêuticas ou de exercitação física, tanto que ricas redes de circulação coronária colateral desaparecem quando espontaneamente se reabrem caminhos arteriais importantes, anteriormente completamente obstruídos.

 

A circulação coronária colateral não é desenvolvida ou aumentada através do condicionamento físico programado. Da mesma maneira, os dilatadores coronários não são capazes de criarem a circulação coronária colateral, porque se trata de processo espontâneo, automático e mecanicamente produzido.

 

Quando o processo coronária-miocárdico evolui sem os cuidados terapêuticos, destinados a preservar a estrutura e função miocárdicas, o destino natural da doença miocárdica segmentar (áreas de miocardiosclerose) será a possível instalação do enfarte. Portanto, embora a doença segmentar coronário-miocárdica seja caracterizada por processos isquêmicos relativos a esforço e estresse psicoemocional poderá chegar a grau de comprometimento tal que a estrutura miocárdica já não agüenta mais manter-se em equilíbrio e então surgem manifestações clínicas de dor no peito e outras queixas de caráter espontâneo e não mais prontamente aliviadas pelos dilatadores coronários de ação rápida (Dinitrato e Trinitrina), por via sublingual.

 

Nesse estágio de pré-enfarte é que se observa o incomparável papel do cardiotônico como o mais eficaz agente terapêutico; levamos 31 anos de buscas contínuas, tentando as diversas formas de tratamento que a ortodoxia nos apontava, até chegarmos finalmente a terapêutica que resolve rapidamente e está ao alcance do qualquer médico.

 

A nosso ver, em razão do imediato controle desse estágio da doença coronário-miocárdica, em evolução mais ou menos iminente para o enfarte, como síndrome intermediária, teve papel preponderante na elaboração de nossa Teoria Miogênica do enfarte miocárdico, reforçada principalmente pela ocorrência comum do enfarte agudo do miocárdio, coincidente com artérias coronárias pérvias, não obstruídas completamente, coronárias normais e nos casos de pontes de safena e coronárias pérvias.

 

Tais achados e resultados terapêuticos têm enfraquecido cada vez mais a teoria clássica da trombose coronária (coágulo entupindo a coronária) como causa do enfarte miocárdico.

 

Também, as coronárias podem desenvolver, em estágios críticos da doença segmentar coronário-miocárdica, graves arritmias cardíacas e até paradas cardíacas como conseqüência da intolerância das regiões miocárdicas comprometidas, frente a eventuais manifestações isquêmicas, especialmente nos casos entregues a própria sorte, isto é, sem cuidados médicos.

 

Tenha-se sempre em mente que na coronariopatia a evolução é predominantemente silenciosa e insidiosa, traiçoeira e nem sempre identificada a tempo; por isso, afirmamos que deve considerar-se feliz quem na vigência do processo coronário é capaz de registrar o fenômeno doloroso no peito, como advertência e indicio de que está ultrapassando a tolerância do seu coração em determinado momento de sua atividade física; esse paciente participa, sem dúvida alguma, do grupo de coronários privilegiados e protegidos frente a isquemia.

 

Nota: Este artigo foi extraído de capítulo com o mesmo título do livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", Mesquita, QHde: Editora Ícone, 1991 cujo resumo pode ser visto em http://www.infarctcombat.org/livros/icem.html

 

Veja também:

 

Seção A Doença