Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Teoria Trombogênica (Herrick, 1912) e Teoria Miogênica (Mesquita, 1972) – Mesma Conduta Terapêutica: Digital ou Estrofantina.

 

 “Eu desejava que fosse fácil escrever sobre a Digital –Eu desespero em agradar a mim mesmo ou instruir a outros em um assunto tão difícil. É muito mais fácil escrever sobre uma doença do que sobre um remédio. A anterior está nas mãos da natureza e um observador consciencioso com olhar para um razoável julgamento não falhará em descrever a aparência; O segundo estará sempre sujeito aos caprichos, as inexatidões e a estupidez do ser humano. William Withering, carta de 29 de setembro de 1778 (1).

 


 

A Digitalis purpurea, uma das espécies derivadas da planta dedaleira, contendo o glicosídeo cardíaco digitoxina, tem sido utilizada há vários séculos na medicina. Ela foi prescrita a partir de 1250 para diversas doenças, e usada erraticamente até o século 18 quando, William Withering, médico e botânico, publicou monografia descrevendo seus efeitos benéficos, indicações e toxidade, com atenção especial ao tratamento da insuficiência cardíaca congestiva. Entretanto, existem relatos de que os Astecas e outros índios do noroeste americano já utilizavam a digital há mais de 700 anos no tratamento da doença cardíaca. É importante destacar que, durante o século 19, o termo insuficiência cardíaca estendia-se a outras doenças do coração e que, até o início do século 20, a digital era também prescrita na doença cardíaca orgânica, inclusive na angina e no uso contínuo em casos de hipertensão, para prevenir a insuficiência cardíaca. Devido a sua eficácia a digital foi chamada de “Um remédio dado por Deus” por Friedrich Ludwig Kreysig em 1814 e de “Ópio para o coração” por Jean-Baptiste Bouillaud em 1841. No século 19 foi descoberto o glicosídeo cardíaco estrofantina (Strophantus Kombi) – que era usado nas flechas envenenadas de nativos Africanos. As primeiras investigações científicas sobre a estrofantina datam de 1863, sendo que cientistas Franceses e outros Europeus tentaram assegurar um lugar para ela como remédio cardíaco, o que foi conseguido por Albert Frankel em 1905 na Alemanha, através da aplicação intravenosa (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7,15).

 


 

Teoria Trombogênica

 

Em 1912, no clássico texto de James B. Herrick, foi colocada tanto a hipótese da trombose coronária como mecanismo fisiopatológico desencadeador do enfarte agudo do miocárdio (Teoria Trombogênica), quanto a sua experiência terapêutica usando a digital e a estrofantina frente a angina do peito e a trombose coronária. Apresentamos a seguir a conduta terapêutica de Herrick, naquela época (8):

 

“”...................... Se esses casos forem reconhecidos, a importância do descanso absoluto na cama por vários dias é bastante clara.  Parece ser muito mais sensato usar a Digital, Estrofantina ou suas congêneres do que seguir a prática rotineira de dar nitroglicerina ou drogas associadas. A esperança para o miocárdio prejudicado caminha na direção de assegurar um fornecimento de sangue através das artérias vizinhas, de forma a restaurar tanto quanto possível sua integridade funcional. A Digital ou Estrofantina por aumentarem a força do batimento cardíaco, tendem a ajudar mais do que os Nitratos nessa direção. O preconceito contra a Digital em casos onde o Miocárdio esteja fraco é apenas parcialmente baseado em fatos. A experiência Clínica mostra que esse remédio é de grande valor na Angina, e especialmente em casos de angina com baixa pressão sangüínea, e estes casos obstrutivos vêm sob este tópico. O oportuno uso deste remédio pode em tais casos, ocasionalmente, salvar a vida. Resultados rápidos também devem ser procurados através do uso hipodérmico ou intravenoso. Outros remédios cardíacos de ação rápida também devem ajudar"”

 

Como se pode ver, Herrick, em sua conduta terapêutica, dava atenção prioritária a preservação do miocárdio. Essa abordagem clínica possivelmente não soou plausível para os colegas, ainda mais devido a ausência  de suporte experimental, ou quem sabe William Withering estivesse certo em seu desespero (1). Aliás, James Herrick parecia estar absolutamente correto em sua prioridade terapêutica. Tanto é que George E. Burch, um dos grandes mestres da cardiologia, disse em 1972:

 

"O paciente com coronariopatia não morre de doença coronária; ele morre de doença miocárdica!"

 

O grande entusiasmo de Herrick quanto ao uso dos cardiotônicos, tanto no tratamento da angina quanto da trombose coronária, não é falado ou discutido em escolas médicas ou em publicações científicas. Por esse motivo a grande maioria dos médicos continua em total ignorância até hoje sobre sua experiência clínica, demonstrada em 1912. A teoria trombogênica de Herrick, que está sofrendo na atualidade diversos questionamentos (12) foi adotada, e sua conduta terapêutica através da Digital ou da Estrofantina foi convenientemente esquecida.

 

Um claro exemplo de memória curta pode ser visto no livro "O uso clínico da Digital", publicado em 1936 (15). Drew Luten, que era professor da Washington University School of Medicine, disse não existir nenhuma evidência de que a mera ocorrência de trombose coronária fosse uma indicação para a digital, mesmo em pacientes com sérios sinais e sintomas. Contudo, informou, deveria ser mantido em mente que a existência de qualquer perigo da digital, em pacientes com trombose coronária, não tinha sido provado até aquela ocasião. Infelizmente não houve citação em seu livro sobre a experiência clínica de Herrick e de outros quanto ao uso da digital na trombose coronária, o que certamente contribuiu para a formação do atual dogma.

 

Mesmo sem conseguirem explicar seus benefícios, dentro do mecanismo da trombose coronária, diversos médicos, em diferentes épocas, têm se utilizado da Digital ou da Estrofantina no tratamento da angina e do enfarte agudo do miocárdio (9).

 

Teoria Miogênica

 

Quintiliano H. de Mesquita desenvolveu no Brasil em 1972 uma nova explicação quanto ao mecanismo fisiopatológico desencadeador do enfarte do miocárdio, que foi denominada de Teoria Miogênica. Nessa teoria  os cardiotônicos (Digital, Estrofantina e outros glicosídeos cardíacos) são os remédios compatíveis, representando a terapêutica específica na prevenção e tratamento das síndromes coronárias agudas (11).

 

Segundo Mesquita, o tratamento com a digital ou estrofantina deve ser iniciado o mais cedo possível em ordem de corrigir o colapso miocárdico regional em progresso. Considerou que a administração de cardiotônicos protege as fibras miocárdicas em colapso, isquêmicas, mas viáveis de serem mantidas longe da necrose a qual certamente ocorreria no caso de não uso desses remédios.

 

Ultrapassado o período agudo o cardiotônico deverá ser usado como tratamento de manutenção, combinando com a profilaxia do enfarte do miocárdio, em ordem de defender o miocárdio isquêmico em seu lado funcional. O tratamento com cardiotônicos deve ser complementado com o uso de vasodilatadores coronários, sendo o primeiro considerado como medicação anti-enfarte e o segundo como medicação anti-angina.

 

 

 Mecanismo da Teoria Miogênica

 

ATEROSCLEROSE CORONÁRIA

FLUXO CORONÁRIO LENTO

ANGINA ESTÁVEL – CORONARIOPATIA SILENCIOSA

1-       ISQUEMIA MIOCÁRDICA RELATIVA

2-       PERDA CONTRÁTIL RECÍPROCA

 

FATORES FÍSICOS E PSICO-EMOCIONAIS ESTRESSANTES 

                                 

 

 

FATORES FARMACOLÓGICOS –

AGENTES INOTRÓPICOS NEGATIVOS

   

 

DOENÇA MIOCARDICA SEGMENTAR

 

ANGINA PECTORIS INSTÁVEL – SÍNDROME INTERMEDIÁRIA

 

QUADRO CLÍNICO ENFARTANTE

 

1-       INSUFICIÊNCIA MIOCÁRDICA REGIONAL

2-       ISQUEMIA MIOCÁRDICA RECÍPROCA

 

NECROSE MIOCÁRDICA PRIMÁRIA

(ENFARTE)

ESTÁSE CORONÁRIA OU FRAGMENTAÇÃO

E DESLOCAMENTO DA PLACA ATEROMATOSA POR EDEMA

TROMBOSE CORONÁRIA SECUNDÁRIA

(NÃO OBRIGATÓRIA)

 

Livro Teoria Miogênica do enfarte do miocárdio, 1979 (11)

 

 

Quintiliano de Mesquita e sua equipe aplicaram a estrofantina e a digital por via endovenosa durante 7 anos (1972-1979) em 1183 pacientes com enfarte agudo do miocárdio, registrando uma sobrevida total de quase 90%. Usando a estrofantina endovenosa em 126 casos de angina instável evitou o enfarte agudo do miocárdio obtendo uma mortalidade de 0% na fase hospitalar. Ele foi premiado em 1975 com o Prêmio de Tradição Ernst Edens dado pela Sociedade Internacional de Combate ao Enfarte do Miocárdio situada em Stuttgart- Alemanha (13, 10).

 

Em 2002 Quintiliano de Mesquita e Claúdio Baptista publicaram um estudo de casos, realizado durante 28 anos, envolvendo perto de 1.200 pacientes com doença coronário-miocárdica estável que foram submetidos ao tratamento permanente através de doses diárias de digitálicos por via oral, no sentido de se prevenir a insuficiência cardíaca, a angina instável, o enfarte do miocárdio e a morte súbita. Como resultado houve a baixa mortalidade global de apenas 14,2% nos pacientes sem enfarte prévio (0,5% ao ano) e de apenas 41% nos pacientes com enfarte prévio (1,4% ao ano) (14).

 

Para outras informações sobre a Teoria Miogênica veja nas seguintes seções desse website:

a) http://www.infarctcombat.org/artigos/icem.html

b) http://www.infarctcombat.org/polemicas/icem.html

c) http://www.infarctcombat.org/qhm/homepage.html

 

Referências

  1. William Whitering, Letter Sep 29, 1778. Cardiac Classics. The C.V. Mosby Company, 1941; St. Louis, USA

  2. Cardiac glycosides: From ancient history through Withering's foxglove to endogenous cardiac glycosides, Norn S, Kruse PR. Dan Medicinhist Arbog 2004;119-32

  3. Mexico: A study of two Americas, III Maize Civilization, Stuart Chase, 1931

  4. Encyclopedia of American Indian Contributions to the World, 15.000 years of inventions and innovations,  Kay Marie Porterfield, Emory Dean Keoke, 2003

  5. Botanical Medicine Monographs and Sundry, American Journal of Pharmacy, V53;8, August 1881

  6. History of the heart and the circulation, Willius F A and Dry, T J; W B Saunders Company, 1948

  7. Strophanthin, Bruno Kisch . Brooklin Medical Press, New York City, N. Y., 1944

  8. Herrick JB. Clinical features of sudden obstruction of the coronary arteries. JAMA 1912;59:2015-2019. Willius, F.A. and Keyes, T.E.: Cardiac Classics. The C.V. Mosby Company, 1941; St. Louis, USA

  9.  A descoberta dos cardiotônicos endógenos: História e perspectivas, (artigo ICEM, 2004)

  10. Porque teoria miogênica e não teoria trombogênica, Arq Bras Cardiol, Quintiliano H de Mesquita e Cláudio A S Baptista, Arq Bras Cardiol,  1994; 62/4:271-75.

  11. Livro Teoria Miogênica do Enfarte do Miocárdio, Quintiliano H. de Mesquita, 1979 (LivroTM)

  12. Controvérsias e remendos na Teoria Trombogênica do enfarte agudo do miocárdio (artigo ICEM, 2005)

  13. Prêmio Ernst Edens outorgado em 1975 a Quintiliano H. de Mesquita e equipe (foto) (tradução)

  14. Cardiotônico: Insuperável na Preservação da Estabilidade Miocárdica como Preventivo das Síndromes Coronárias Agudas e Responsável pela Prolongada Sobrevida -- Casuística de 28 anos (1972-2000), Mesquita, QHde e Baptista, CAS.  Ars Cvrandi, Volume 35 - nº 3 - maio de 2002 (Republicado na Internet, em 2005).

  15. Drew Luten, The clinical use of digitalis, Charles C Thomas, 1936

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